"A escravidão no Brasil" é tema de reportagem da Exame
No Brasil, 68 empresas utilizam mão-de-obra escrava em alguma parte de sua cadeia produtiva. Elas compõem a lista suja do Ministério do Trabalho, que há três anos não publicava os nomes de quem abusa dessa prática ilegal, devido a uma ação da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). Foram meses de embates na Justiça até que, em março deste ano, a lista voltasse a ser atualizada.
Estima-se que 161.000 pessoas ainda sejam escravizadas no Brasil, de acordo com a ONG Walk Free – mesmo que a abolição tenha sido oficializada há quase 130 anos. Desde 1995, o país tem o compromisso, junto a organismos internacionais, de combater a prática, e mais de 52.000 trabalhadores já foram resgatados de condições escravizantes de trabalho.
No início de abril, oito trabalhadores foram encontrados em um curral no Tocantins, vivendo sem água potável, sem banheiros e sem receber salário. No Rio, a polícia prendeu em janeiro uma quadrilha de falsos empresários que aliciavam jovens para trabalharem como modelos, sofrendo abuso sexual e longas jornadas de trabalho. Em São Paulo, bolivianos recebem menos de 500 reais para costurar peças de luxo em oficinas têxteis.
Trabalho escravo, no século 21, não significa mais ser acorrentado em senzalas. No mundo, são mais de 45,8 milhões de pessoas em situação de escravidão moderna. “É importante identificar o que é uma infração trabalhista isolada, como ninguém estar de máscara. O trabalho escravo é uma condição que trata o trabalhador como coisa, que fere a dignidade”, diz Adilson Carvalho, coordenador-geral da Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae). Seguindo recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a legislação brasileira define quatro formas de trabalho escravo: trabalho forçado; jornada exaustiva; condições degradantes; servidão por dívida.
Com base nesse conceito, aceito internacionalmente, a escravidão está presente em todas as regiões do país – e tem crescido nos grandes centros. No Brasil, o número de trabalhadores resgatados em área urbana está concentrado sobretudo na construção civil (5% dos trabalhadores resgatados até 2014) e no setor têxtil (1%), que tem explorado imigrantes latino-americanos. O número de oficinas têxteis em São Paulo, por exemplo, passa de 6.000, o que dificulta a fiscalização. Mais de 300.000 imigrantes latino-americanos vivem na cidade. Mas as atividades rurais ainda são campeãs nesse ranking: dentre os trabalhadores resgatados entre 2003 e 2014, 29% eram do setor pecuário e 25% da indústria da cana.
O êxodo também é um ponto chave na questão do trabalho escravo. Dados de 2014 mostram que a maior parte dos trabalhadores resgatados foram migrantes do Maranhão (23,6%), da Bahia (9,4%) e do Pará (8,9%). Daí a importância de enxergar esse trabalhador integralmente, para entender as raízes da escravidão. “Se o trabalhador que migrou é resgatado, mas a situação na cidade de origem não é resolvida, não adianta. As pessoas continuam obrigadas a se submeterem a condições degradantes”, diz Carlos Eduardo Chaves Silva, da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).
As manobras
Trabalho escravo é crime, tipificado no artigo 149 do Código Penal brasileiro, com sentenças que podem ir de multas milionárias a uma pena de oito anos de prisão. Mas o que não faltam são facilidades para as empresas que ainda praticam a escravidão no Brasil. “A lista é o instrumento mais temido, mais do que qualquer outro tipo de sanção, porque traz um prejuízo imediato para a imagem da empresa”, diz Tiago Cavalcanti, coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete), vinculada ao Ministério Público do Trabalho. A empresa passa dois anos na lista tendo sua conduta monitorada para ver se aboliu as práticas ilegais, mas sem a necessidade de interromper a operação.
Em 2016, ficou ainda mais fácil para as empresas. Passou a existir a possibilidade de as empresas negociarem o chamado Termo de Ajustamento de Conduta, que permite aos empregadores fazerem um acordo com a Advocacia Geral da União, se comprometendo a mudar suas práticas, ficando numa espécie de “área de observação” antes de entrar efetivamente na lista. A nova regra veio junto com outras mudanças de uma nova portaria para regular o tema, criada como resposta à ação da Abrainc movida em 2014, que questionava o direito de defesa das empresas. Na ocasião, o pedido foi acatado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, e terminou com a lista suspensa.
Chance de defesa, portanto, é o que não falta na nova portaria. Assim que ela foi publicada, a ministra Cármen Lúcia extinguiu a ação da Abrainc. Mas isso não significou a republicação da lista. A ONG Conectas fez uma denúncia à ONU sobre a demora brasileira em republicar o instrumento. “A partir de maio, o governo não publicou a lista por motivos injustificáveis”, afirma Cavalcanti, do MPT.
Em março deste ano, quando a lista, enfim, foi publicada, constavam 85 nomes de pessoas físicas ou jurídicas. Mas, duas horas depois, o Ministério do Trabalho retirou 17 nomes, alegando que os processos ainda estavam sendo julgados. Porém, a ONG Repórter Brasil apurou que pelo menos seis destes casos já não possuem mais recursos administrativos.
O Ministério do Trabalho foi procurado para explicar o porquê da demora em publicar a lista e o porquê das exclusões, mas se limitou a esclarecer que obedece a portaria e que “sempre foi a favor da publicação da lista, desde que feita de forma justa, não prejudicando os que ainda tinham, por lei, atuação em trânsito”. Antes de responder por meio de nota oficial, o Ministério colocou a reportagem em contato com uma funcionária da área técnica, que afirmou que “os dados para a lista são coletados rigorosamente, e que não entendeu o porquê de os nomes terem sido retirados”. A funcionária ainda alegou que os dados sempre foram publicados pela própria área técnica no site, mas que, este ano excepcionalmente, a função ficou sob responsabilidade do gabinete.
Além das manobras do próprio governo federal, a lista divulgada em 2017 é muito mais enxuta, com 68 nomes, menos do que o de costume. A lista de 2014 — a última antes da suspensão — continha 609 infratores. Isso porque a Justiça obrigou o Ministério do Trabalho a publicar apenas os nomes daqueles que foram condenados depois da vigência da nova portaria. Portanto, quem foi condenado antes disso fica livre.
A abrangência das fiscalizações também caiu muito. Em 2008, foram 5.016 trabalhadores resgatados e 4.901 autos de infração executados por algum auditor fiscal contra o empregador. Em 2016, esse número caiu para 885 trabalhadores resgatados (redução de 80% em oito anos) e 2.366 autos.
Atualmente, há pouco mais de 2.500 auditores, enquanto a OIT avalia que o Brasil precisaria de ao menos 5.000 auditores. São quatro equipes móveis de trabalho, ante dez que existiam em meados de 2000. A falta de fiscalização prejudica toda a aplicação da lei. Na Região Norte, por exemplo, a Comissão Pastoral da Terra estima que 60% das denúncias não são fiscalizadas. “Não
basta manter a lista ou a legislação se não há fiscalização. Esse esvaziamento dos recursos financeiros para fiscalização é tão perigoso quanto as ameaças à lista”, diz Caio Borges, representante da Conectas.
Especialistas também armam que a lei 4.302, que permite a terceirização para todas as atividades de uma empresa, pode aumentar as dificuldades no combate à escravidão. Isso porque a segmentação da cadeia cria entraves à fiscalização. Não à toa, nos dez maiores resgates entre 2010 e 2013, 90% dos trabalhadores eram terceirizados, segundo dados do Ministério do Trabalho. “O trabalho escravo está presente mais em algumas atividades do que outras, não pela atividade em si, mas por características de alguns setores, que funcionam por sucessivas subcontratações”, diz o especialista em direito trabalhista Antônio Rodrigues de Freitas Junior, da Faculdade de Direito da USP.
Ninguém vai para a cadeia
Nesse passo, o Brasil está longe de erradicar o trabalho escravo. No ranking da ONG Walk Free, o país está apenas na 51ª posição, numa lista com mais de 167 países. Embora haja sanções penais previstas na lei, os empregadores não são verdadeiramente punidos. Nos últimos dez anos, foram pouco mais de 20 condenações penais. “Se aplicada, a legislação brasileira é uma das melhores do mundo. Mas as condenações ainda são poucas e inefetivas”, diz Antonio Carlos de Mello, coordenador do Programa de Combate ao Trabalho Escravo da OIT. “Há tanta margem para recursos que, quando chega a condenação, o crime está prescrito ou se reduz a uma pena mínima”.
O Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em dezembro passado, pelo caso da fazenda Brasil Verde, no interior do Pará, em que 300 trabalhadores foram resgatados entre 1989 e 2002, mas ninguém foi punido. A decisão da Corte afirma que crimes de trabalho escravo não são passíveis de prescrição.
A Justiça tem aliviado para os empregadores. “O maior problema é a interpretação errada do que é trabalho escravo. Em várias decisões de absolvição, mesmo demonstrando com provas robustas o trabalho degradante, os magistrados absolvem o acusado afirmando que a liberdade do trabalhador não estava cerceada”, diz a especialista em trabalho escravo Valena Jacob, do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Pará.
Um dos principais desafios nos próximos anos é aprimorar o conceito atual de trabalho análogo ao escravo – e se prevenir contra retrocessos na definição. O projeto de lei 432/2013, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR), que tramita no Congresso, quer que trabalho escravo seja limitado à “restrição de liberdade pessoal” (incluindo vigilância, impossibilidade de locomoção e ameaça de punição caso o trabalhador deixe o local). Dessa forma, o conceito deixaria de incluir condições degradantes de trabalho, vistas como parte importante da definição contemporânea de trabalho escravo.
E os exemplos de trabalho desumano não estão restritos a fazendas – grandes empresas também praticam trabalho escravo. Em março deste ano, a empreiteira Odebrecht foi condenada a pagar a maior multa por escravidão da história, de 30 milhões de reais, por submeter 400 trabalhadores brasileiros a condições degradantes em Angola. Contratados na cidade de Américo Brasiliense, em São Paulo, os trabalhadores consumiam água salobra, comida estragada e tiveram a liberdade cerceada com apropriação de seus documentos – o procedimento era de retirar os passaportes dos trabalhadores assim que eles chegassem ao país africano. Mas não houve punição na Justiça penal.
Apesar dos problemas com a Lista Suja, é inegável que o instrumento é importante. Em 2010, quando a sucroalcoleira Cosan foi incluída na lista após 42 trabalhadores terem sido resgatados numa usina terceirizada no interior de São Paulo, a rede de supermercados Walmart chegou a banir de suas prateleiras o açúcar União. Na ocasião, a Cosan também teve um financiamento do BNDES paralisado. A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) recomenda que bancos não emprestem dinheiro a quem tem nome na Lista Suja, por conta da avaliação
de risco. Outras empresas também costumam não comprar de fornecedores que apareçam na lista, com medo de associar sua imagem a uma pauta negativa ou de serem elas próprias processadas.
“A gente achava que o trabalho escravo seria resolvido em cinco anos”, afirma Mércia Consolação, diretora do Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (InPACTO). “Mas estamos há 20 atuando e continuamos achando problemas debaixo do tapete”.
Por Carol Oliveira, da Exame
Foto: Exame