Legislação "incompleta" do país abranda punição
Para o procurador Mario Luiz Bonsaglia, do Ministério Público Federal (MPF), Código Penal brasileiro não atende aos preceitos de protocolos internacionais, o que resulta em penas menos rígidas para o crime de tráfico de pessoas
Por Maurício Reimberg
Cinco anos após ratificar a Convenção de Palermo da Organização das Nações Unidas (ONU) e os seus protocolos adicionais – por meio dos quais assumiu compromissos para o enfrentamento ao tráfico de pessoas -, o Brasil ainda não possui leis que dão conta por completo de medidas para a prevenção do crime, a proteção às vítimas e a responsabilização dos envolvidos.
A avaliação é de Mario Luiz Bonsaglia, da Procuradoria Regional da República da 3ª Região, que atua em São Paulo e Mato Grosso do Sul. Doutor em direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP), ele afirma que a lei penal é incompleta, o que resulta em punições brandas para esse tipo de crime. “Não há um capítulo do Código Penal que cuide de modo concatenado das diversas hipóteses delitivas relacionados ao tráfico de pessoas”, critica. O tráfico de pessoas envolve aliciamento, transporte e exploração.
A Convenção de Palermo é o nome pelo qual ficou conhecida a “Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional“, realizada em 1999 na Itália. Adotada pela ONU em 2000, está em vigor internacionalmente desde 2003. Os protocolos para “prevenir, suprimir e punir o tráfico de pessoas, especialmente mulheres e crianças”, “contra o contrabando de migrantes por terra, ar e mar” e “contra a fabricação ilegal e o tráfico de armas de fogo, inclusive peças, acessórios e munições” complementam o documento e também foram aceitos formalmente pelo Brasil.
Para Mario, que integra a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público Federal (MPF), a lei brasileira não dá tratamento específico a diversas condutas previstas nos protocolos. Um exemplo dessa “limitação” está no art. 231 do Código Penal, que aborda o tráfico internacional de seres humanos. A lei contempla apenas a hipótese de tráfico de pessoa referente à prostituição. O protocolo adicional, contudo, prevê a criminalização do tráfico voltado a qualquer forma de exploração sexual, além de orientar punições para casos de escravidão e de remoção de órgãos.
Já o protocolo relativo ao combate ao tráfico de migrantes estipula a criminalização dessa modalidade sempre que for verificada a finalidade de obtenção de vantagem financeira ou material. No entanto, o Código Penal somente prevê a caracterização de crime se o recrutamento de trabalhadores for realizado “mediante fraude”.
O procurador federal defende que as formas mais graves de tráfico de pessoas, como os aliciamentos para extração de órgãos, deveriam ser considerados crimes hediondos, permitindo decisões penais mais rigorosas. O tráfico de mulheres para fins de prostituição, por exemplo, ainda está previsto no capítulo dos “crimes contra os costumes” no Código Penal. “É certo que o bem jurídico atingido por essa conduta é a dignidade da pessoa humana. Isso confunde um pouco as coisas”, explica.
Além dos descompassos já existentes, uma iniciativa da Câmara dos Deputados pode, segundo Mario, afrouxar ainda mais a criminalização do tráfico de pessoas. O Projeto de Lei (PL) nº 2845/2003, em fase final de tramitação, propõe pena de 6 a 12 anos em casos de rapto de criança ou adolescente com a finalidade de remoção de órgãos, pena essa que pode ser aumentada para 12 a 30 anos caso a criança ou adolescente venha a falecer.
“As penas previstas seriam inferiores àquelas contempladas para casos de extorsão mediante sequestro que resulte na morte da vítima (24 a 30 anos)”, lamenta o procurador. O projeto foi apresentado pelo deputado licenciado Nelson Pelegrino (PT-BA), com substitutivo do deputado Daniel Almeida (PCdoB-BA). O texto aguarda parecer na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara Federal.
Tráfico
O tráfico de seres humanos é um das atividades criminosas mais lucrativas do mundo. Segundo dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês), a atividade movimenta US$ 32 bilhões por ano. As quadrilhas são responsáveis anualmente pelo tráfico ilegal de aproximadamente 2,5 milhões de pessoas. Relatório divulgado em fevereiro deste ano aponta ainda que 79% dos casos estão ligados à exploração sexual, que na maioria das vezes envolvem mulheres e crianças.
No Brasil, levantamento do MPF, que compilou os resultados de ações movidas até 2008 para combater o tráfico de pessoas, mostra que os casos mais frequentes são relacionados ao uso de mão-de-obra escrava: 536 processos. O tráfico de mulheres para fins de prostituição aparece em segundo lugar (183 casos). Ao todo, nos tribunais regionais federais há 115 ações de combate ao tráfico de pessoas, além de 817 processos tramitando na primeira instância da Justiça Federal. Há diversas condenações transitadas em julgado.
Nos últimos anos, o procurador Mario aponta uma evolução na formulação e aplicação de algumas políticas públicas. Como exemplo, cita a repressão ao crime de redução de pessoa à condição análoga à de escravo. Nesse caso, o aliciamento de trabalhadores é feito em geral pelo “gato”, intermediário de mão-de-obra no meio rural a serviço do fazendeiro.
“A fiscalização sistemática do Ministério do Trabalho e Emprego, em parceria com a Polícia Federal e com a participação de procuradores do Trabalho, tem produzido bons resultados”, avalia. Criado em 1995, o grupo móvel é o responsável pelas libertações de trabalhadores no país e está sob coordenação da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), dentro do MTE.
Plano
Em pronunciamento durante o Seminário Internacional sobre Tráfico de Pessoas (realizado há duas semanas no Ministério Público de São Paulo), o secretário nacional de Justiça Romeu Tuma Júnior negou que o Brasil seja “negligente” no combate tráfico de pessoas e disse que o país está alinhado às normas da Convenção de Palermo. O evento foi promovido pela Secretaria Nacional de Justiça (SNJ), em parceria com os Estados parte e associados ao Mercosul (Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Chile e Venezuela).
No evento, o secretário defendeu uma possível revisão dos termos do próprio protocolo. “Até que ponto os países atenderam às obrigações previstas no Protocolo de Palermo? O Brasil vem implementando uma política pública para enfrentar esse crime organizado. Sendo o tráfico de pessoas um crime dinâmico, quero ressaltar a necessidade de discutirmos a atualização ou não do próprio Protocolo”, disse Romeu Tuma Júnior. Ele defende a ampliação de medidas contra o tráfico para fins de remoção de órgãos.
O Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP) foi aprovado em janeiro do ano passado e, desde então, está em fase de execução. O prazo de implementação termina em 2010. A maioria das prioridades está vinculada a atividades-meio, como o levantamento de dados e acúmulo de conhecimento, a capacitação de atores acerca do problema, o aperfeiçoamento da legislação brasileira e a padronização de troca de informações entre órgãos, inclusive via cooperação internacional.
O aperfeiçoamento da legislação brasileira relativa ao enfrentamento ao tráfico de pessoas e crimes correlatos é a prioridades nº 6 do PNETP. As metas, a cargo do Ministério da Justiça (MJ), preveem a elaboração de dois projetos: um de criação de um fundo para ações de combate e outro de uniformização do conceito do problema, em consonância com a política nacional e os compromissos internacionais.
Romeu Tuma Júnior, que é ex-delegado de polícia e filho do senador Romeu Tuma (PTB-SP), salienta* que o novo projeto de Lei do Estrangeiro prevê a criminalização do tráfico de imigrantes. A proposta foi encaminhada semana passada pelo governo federal ao Congresso, na mesma cerimônia de sanção da anistia a imigrantes ilegais. Além disso, a SNJ formou o grupo de trabalho previsto no PNETP para estudar propostas legislativas em andamento no Parlamento. Segundo ele, o grupo irá apresentar em breve proposta do governo para tipificar crimes relacionados ao assunto que não estão previstos no Código Penal. “Aliás, o MPF participa deste grupo”, adiciona.
Campanha
O secretário afirma ainda que o tráfico de pessoas não é um problema só dos países de origem das vítimas. Ele reforça que também é preciso haver uma reação dos locais de destino. Como exemplo, cita o tráfico de pessoas para fins de exploração do trabalho. “Tanto os países de origem como os de destino devem evitar o consumo de produtos da escravidão, pois o consumo estimula a prática dessa modalidade de crime organizado”, disse.
Neste mês, o governo irá colocar em prática a Campanha Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, uma das metas previstas no PNETP. Materiais de divulgação, como cartazes e folders explicativos, serão distribuídos em pontos considerados estratégicos, como aeroportos, rodoviárias, postos e núcleos de apoio. O enfrentamento ao tráfico também é meta do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci).
“O objetivo é mobilizar a sociedade como um todo, obter denúncias, e levar informações sobre quais órgãos atendem as vítimas”, explica Ricardo Lins, coordenador do Programa para o Enfrentamento do Tráfico de Pessoas da Secretaria Nacional de Justiça. A campanha será desenvolvida em parceria com os estados e municípios, sobretudo aqueles que já contam com Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP).
Apesar de ser uma grave violação dos direitos humanos, sustentada por redes criminosas internacionais, o tráfico de pessoas ainda passa despercebido ao lado de outros delitos. A negligência acontece, segundo o procurador federal, por diversos motivos. Ele aponta a escassa consciência dos “operadores do direito” e dos agentes de segurança pública em relação ao problema como um todo e uma certa “falta de foco” da ação repressiva estatal, já que esse crime está geralmente associado a outros tipos de infrações.
É possível observar essa conjunção de fatores na atuação do imigrante irregular apanhado com documentos falsificados ou na atividade das “mulas”, pessoas encarregadas de transportar cocaína e outras substâncias entorpecentes, sobretudo em transporte aéreo. “Frequentemente elas acabam sendo as únicas responsabilizadas, e as autoridades não identificam as organizações criminosas que aliciam tais pessoas”, afirma o procurador.
*Matéria atualizada na tarde desta quarta-feira (8)