Perenidade da violência sobressai em balanço de conflitos
Para integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT), análise comparativa de dados do 1º semestre mostra que quem luta pela terra tende a se deparar com expulsão promovida por agentes privados ou com despejo público
Por Maurício Hashizume
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgou, nesta quinta-feira (3), dados sobre os conflitos agrários do primeiro semestre deste ano. Mais do que sinais de recuo em números absolutos (de janeiro a julho de 2009, foram registrados 366 conflitos, que afetaram diretamente 193.174 pessoas; ao passo que no mesmo período de 2008, foram contabilizados 678 conflitos e 301.234 envolvidos) ou indicadores de intensificação em termos relativos (um assassinato a cada 30 conflitos, no 1º semestre de 2009, e um assassinato a cada 52 conflitos, nos primeiros seis meses de 2008), a regularidade do desrespeito aos direitos humanos e a persistência das condições geradoras e dos atos de confronto dão contornos à violência no campo brasileiro.
Dados sobre expulsões (promovidas por agentes privados) e despejos (executados pelo poder público) ilustram bem essa forte tendência de continuidade. Segundo Dirceu Fumagalli, da coordenação nacional da CPT, é possível identificar inclusive uma “sincronia” de ações em que o resultado final é sempre o mesmo: a negação do acesso de trabalhadores e comunidades à terra. “Quando os despejos não são feitos pelo Estado, a ação privada nas expulsões aumenta [como se deu em 2007]. Quando o próprio Estado faz mais despejos [como se verifica em 2008 e 2009], a ação privada diminui”.
“O que vem ocorrendo no campo brasileiro é a persistência da violência. Há momentos em que esta violência declina e depois retorna. Mas se olharmos ao longo do tempo – considerando que imaginávamos que no terceiro milênio este processo seria superado, com uma ampla reforma agrária e uma série de políticas públicas -, vemos o quadro sem modificação”, complementa Darci Frigo, da organização não-governamental (ONG) Terra de Direitos. “Permanecem as condições que permitem a perpetuação desta violência, seja por parte de agentes da força pública ou de milícias privadas”.
Ao todo, foram 12 assassinatos, 44 tentativas de homicídio, 22 ameaças de morte e seis pessoas torturadas de janeiro a julho deste ano. Nos mesmos meses de 2008, foram 13 assassinatos, 32 tentativas de homicídio, 38 ameaças de morte e dois torturados. Se o mês de agosto de 2009 for incluído no balanço, o número sobe para 17 (confira lista divulgada pela CPT) – sem os cinco assassinados no Assentamento Chico Mendes, em Brejo da Madre de Deus (PE), em julho, pois o crime ainda está sob investigação.
De acordo com a CPT, 2.013 foram libertadas de trabalho escravo na metade inicial de 2009. Nos Estados do Acre, Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Tocantins e Bahia, o número de libertações já é maior que o registrado em todo o ano passado. Surpreendentemente, 39% (786 pessoas) dos que ganharam a liberdade no 1º semestre eram explorados no Sudeste.
Um dos dados mais preocupantes é a quantidade de adolescentes libertados da escravidão. Apenas no primeiro semestre de 2009, foram libertados 88 jovens com menos de 18 anos. No mesmo período em 2008, foram 16. “Isso mostra uma nova geração sob o jugo da escravidão, perpetuando o histórico de seus antepassados”, comenta a CPT, que salienta que os dados ora divulgados são parciais, pois novas informações a respeito de conflitos ocorridos neste mesmo período poderão ser incluídas posteriormente no relatório anual.
Na visão de Dirceu, a estrutura estatal (incluindo os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário) atua a favor da permanência da concentração da terra, apontada por ele como causa fundamental dos conflitos agrários. “O Estado não está para cumprir os direitos constitucionais”, declara. O representante da CPT lembra que não há uma a reforma agrária efetiva no país, que a impunidade não regride e que as políticas públicas que deveriam garantir qualidade de vida não são capazes de evitar a vulnerabilidade dos excluídos – que desemboca em fluxos migratórios e na sujeição ao trabalho escravo.
Para Darci Frigo, além da ausência de avanços efetivos na política de democratização da terra, as obras de infra-estrutura de apoio ao agronegócio, como as previstas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal, também contribuem para este clima de pressão. “As populações locais e os grupos que se opõem [a esses empreendimentos] sofrem intimidações e, às vezes, chega-se ao recurso desta violência extrema”, completa o advogado da Terra de Direitos, que acompanha questões de conflitos agrários país afora.
“Mesmo que tenhamos uma Secretaria Especial no país que tenha preocupações com uma política que respeite os direitos humanos, os Estados têm autonomia sobre as polícias. [O comando estadual] Tem vínculos políticos com grupos locais e acaba sendo conivente com a violência, inclusive com o processo de criminalização [dos movimentos sociais] como o que ocorre no Rio Grande do Sul. Lá, a própria Brigada Militar é agente da violência, apoiada por forças privadas”, acrescenta Darci. “A relação das forças econômicas locais com os aparatos policial e judicial acaba sendo um fator que mantém a liberdade de atuação desses grupos que utilizam de violência”.
Índices
Uma das questões relacionadas à violência no campo que está na ordem do dia é a atualização dos índices de produtividade. Em resposta à Jornada Nacional de Lutas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), realizada em diversos Estados da federação em meados de agosto, representantes da cúpula governamental prometeram publicar em 15 dias a portaria que atualiza os índices que seguem parâmetros de 1975. Com novos critérios de exigência, propriedades hoje consideradas produtivas podem vir a ser enquadradas como improdutivas e sujeitas à reforma agrária.
Logo após o anúncio, setores ligados aos ruralistas – encabeçados pelo ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes – condenaram a atualização. De tão sensível, a questão acabou sendo levada aos comandos partidários. Como forma de pressão, setores do PMDB ameaçam retaliações ao governo. O prazo inicial estipulado se encerrou e, ao que tudo indica, a portaria com os novos índices e a assinatura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, prometida aos movimentos sociais do campo, não deve ser publicada assim tão breve.
“Não será estranho se o governo enrolar mais alguns anos para atualizar os índices de produtividade”, comenta Dirceu, da CPT, ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Ele, aliás, não vê muita distinção entre os ruralistas e o governo e mostra desconfiança sobre a efetividade do compromisso palaciano. “Não temos o Estado imparcial que faz a mediação entre os interesses do capital e do trabalho”, sublinha.
Na última terça-feira (1º), a CPT apresentou nota pública à sociedade em apoio à atualização dos índices. “A conclusão óbvia a que se chega é que por trás desta guerra da bancada ruralista, teimando em manter os velhos índices de produtividade de 1975 está o intento de preservar o latifúndio improdutivo das empresas nacionais e estrangeiras, desconsiderando a função social da propriedade, estabelecida na nossa Constituição Federal, continuando o Brasil, assim, o campeão mundial do latifúndio depois de Serra Leoa”.
A entidade questiona o número de 400 mil propriedades rurais que seriam afetadas pelos novos critérios e que inviabilizariam a produção agrícola do país. “Na realidade, este número corresponde a apenas 10% das propriedades rurais, embora ocupem 42,6% das terras. Com efeito, das 4.238.447 propriedades cadastradas pelo Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], 3.838.000, ou seja, 90% não seriam afetadas pela medida. São estas propriedades as que garantem 70% do alimento que é posto na mesa dos brasileiros”, coloca o documento da comissão.
“Onde há maior concentração de sem-terra é onde o número de assentamentos é menor. E isso justamente ao lado de áreas improdutivas, que a atualização dos índices poderia facilmente disponibilizar para assentamento das famílias”, emenda a nota. Segundo a CPT, há uma concentração de ocupações e acampamentos nas Regiões Nordeste e Centro-Sul, em descompasso com os assentamentos instalados pelo governo na Amazônia. “Fica claro, pois, que onde há mais procura por terra, no Nordeste e no Centro-Sul, há menos disponibilidade de terras. E um dos fatores que limita esta disponibilidade são os índices defasados de produtividade”.