Ex-prefeito mantém trabalhadores em curral com animais
Médico e dono de hospital, Gilson Freire de Santana, que foi prefeito de Açailândia (MA) entre 1997 a 2000, é dono da Fazenda Santa Maria, de onde 19 pessoas foram libertadas. A maioria dormia no curral, junto com animais
Por Bianca Pyl
Operação do grupo móvel de fiscalização encontrou 19 trabalhadores, um deles com 17 anos de idade, em condições análogas à escravidão em propriedade rural pertencente ao médico Gilson Freire de Santana, que foi prefeito de Açailândia (MA) entre 1997 e 2000 e é dono do Hospital Santa Luzia. Do total de libertados da Fazenda Santa Maria, 15 dormiam no curral, ao lado de animais e de agrotóxicos. As outras quatro pessoas resgatadas estavam em uma casa precária de madeira, com o teto prestes a desabar.
“O empregador igualou os trabalhadores aos animais que possui”, comparou Márcia Albernaz, auditora fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) que coordenou a operação. Os empregados dormiam em redes, trazidas por eles mesmos de suas casas, e enfrentavam dificuldades para descansar por causa do barulho dos animais. “Quando dava 3h da manhã, ninguém conseguia dormir mais. Nosso horário [para acordar] era 6h30, mas o vaqueiro chegava gritando com os bichos e aí era uma barulheira danada a madrugada toda”, contou João*, que trabalhou por quatro meses no local, foi libertado durante a ação e conversou por telefone com a Repórter Brasil.
Não havia instalação sanitária adequada e nem chuveiros. O banho era tomado a céu aberto. Quando chegaram ao local, os empregados tiveram que construir um “abrigo” de lona, por conta própria e sem ter receibido pelo serviço, para tomar banho de caneca. “Como a gente não tinha material [suficiente], só dava para cobrir da cintura pra baixo. A água vinha lá da casa do vaqueiro e ficava armazenada em um tambor”, explicou a vítima.
A atividade principal desenvolvida na Fazenda Santa Maria é a criação de gado bovino para corte e para produção de leite. De acordo com a fiscalização, o rebanho criado no local soma mais de 1 mil cabeças. Os libertados eram responsáveis pelo “roço de juquira” (“limpeza” para formação de pastagem), bem como pela ampliação e manutenção de cercas. Parte do grupo trabalhava na construção de uma casa próxima à sede.
Os alimentos não eram armazenados de forma adequada e o lixo também não era retirado com regularidade, o que fazia com que o local estivesse infestado de ratos. Os trabalhadores construíram uma cozinha improvisada com tábuas de madeira. A comida era comprada pelos próprios empregados, que juntavam dinheiro e compravam os mantimentos todo mês.
“Cada um dava R$ 50. Aí a gente comprava a comida do mês todo”, relatou João. Os trabalhadores faziam um rodízio para cozinhar: a cada dia, um deles ficava responsável pelo preparo da comida. A água usava para beber também vinha de um poço localizado na sede da fazenda. “A gente pegava água lá da casa do vaqueiro [alojado na sede] e colocava em dois tambores, um para banhar e outra para beber e fazer comida. Esse [último] a gente cobria com um pano”, completou João. Não havia local para as refeições.
Os libertados não utilizavam nenhum equipamento de proteção individual (EPI); nem mesmo aqueles que se dedicavam à aplicação dos agrotóxicos. Além disso, as roupas dos aplicadores eram lavadas por eles mesmos junto com as outras, o que ampliava o risco de contaminação.
Nenhum dos empregados tinha registro na Carteira de Trabalho e da Previdência Social (CTPS) e o empregador não pagava o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Moradores da região de Açailândia (MA), eles estavam no local há meses; alguns trabalhavam desde maio de 2010.
Com apenas 21 anos, João declarou sentir os efeitos dos anos de trabalho sem a proteção adequada. “Eu sempre bati veneno [aplicação de agrotóxico], né. Só que nunca usei máscara nem nada”, contou. Ele reclama de dores, tem acordado enjoado e vem sentindo vontade de vomitar com freqüência.
O libertado declarou ter conhecido “doutor” Gilson quando este último estivera em outra de suas terras para efetuar o pagamento dos empregados. O médico possui outras duas fazendas próximas à Santa Maria: a Berro D´Água, com mais 1 mil cabeças de gado, e a Paraíso. “A gente dormia em outra fazenda dele e ele foi lá ver o trabalho. Depois, fomos para a Santa Maria, onde ainda nem tinha alojamento. E ele nunca foi ver a nossa situação”.
O MTE lavrou 31 autos de infração contra o ex-prefeito de Açailândia (MA) por conta das irregularidades encontradas. A ação foi realizada no início de setembro. Contudo, as verbas rescisórias e o valor por dano moral aos trabalhadores só foram efetivamente pagos pelo empregador em 27 de setembro, após a intervenção do Ministério Público do Trabalho (MPT). A procuradora Andrea Tertuliano de Oliveira, que participou do grupo móvel, entrou com uma ação específica para bloquear os bens do fazendeiro. Logo após a fiscalização, Gilson havia se recusado a efetuar o pagamento dos direitos trabalhistas e das indenizações, que somaram R$ 69 mil.
Por conta do risco que corriam, os trabalhadores foram imediatamente retirados do local e aguardaram o encerramento da fiscalização em um hotel na cidade. Gilson também chegou a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), mas não cumpriu o acordo de pagar os trabalhadores. O empregador não foi localizado pela reportagem para comentar o caso.
Operação Mauritia
A equipe do grupo móvel que libertou trabalhadores da fazenda do ex-prefeito também participou da Operação Maurítia (nome científico do buriti), que teve como objetivo averiguar o funcionamento de serrarias que fazem extração ilegal de madeira da Reserva Biológica (Rebio) do Gurupi e das Terras Indígenas (TIs) Arariboia, Alto Turiaçu, Caru e Awá. A blitz, que contou com o envolvimento de mais de 180 agentes públicos, foi composta pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Força Nacional, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), além do MPT e do MTE.
De acordo com a auditora fiscal Márcia, diversos problemas trabalhistas foram encontrados nos pontos inspecionados, mas não houve flagrantes de trabalho escravo. “Enviamos à chefia da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Maranhão (SRTE/MA) três proposições de interdição de serrarias que colocavam em risco a segurança dos trabalhadores”.
*nome fictício