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12 de julho de 2010

Libertações de escravizados marcam a safra do café

Mais de 90 trabalhadores foram escravizados em fazendas de café no Brasil nesta safra. As carteiras de trabalho das vítimas foram retidas pelos empregadores, que exploravam o expediente da servidão por dívida

Por Bianca Pyl

Após fugirem e conseguirem retornar à Bahia, três trabalhadores procuraram a Comissão Pastoral da Terra (CPT) para denunciar a situação de trabalho à que foram submetidos no município de Jaguaré (ES), maior produtor de café conilon (usado com fins industriais) do Brasil.
As denúncias motivaram uma série de fiscalizações em propriedades de café no Espírito Santo e resultaram, inicialmente, na libertação de 77 vítimas de escravidão. Em última ação, realizada no município de Marechal Floriano (ES), foram encontradas mais 15 pessoas em situação semelhante à escravidão. No total, 92 vítimas foram libertadas de trabalho análogo ao de escravos pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Espírito Santo (SRTE/ES), pelo Ministério Público do Trabalho e pela Polícia Federal (PF).
De acordo com Rodrigo Carvalho, auditor fiscal da SRTE/ES, a safra do café no Espírito Santo se inicia em abril, época em que cerca de 20 mil trabalhadores – vindos sobretudo da Bahia – chegam à região para colher café. O município de Jaguaré já chegou a receber 15 mil pessoas (mais de 60% do total de habitantes, de 23.472 em 2009, segundo o IBGE). “O município chega a produzir cerca de 1 milhão e 500 mil sacas em uma safra”, explica Rodrigo.
As fiscalizações se iniciaram em maio e se estenderam pelo mês de junho. Os três trabalhadores que denunciaram a situação haviam sido escravizados na fazenda Jundiá, que pertence à Celso Brioschi; fazenda Armani, de Laurindo Armani; e fazenda Mundo Novo, de propriedade de Nelsinho Armani. Os empregados trabalhavam na colheita de café desde abril.
Servidão por dívida
Nos três casos, os trabalhadores foram aliciados em Itabuna (BA), Gandu (BA) e Teolândia (BA) por um intermediário na mão-de-obra (“gato”). “Essa região da Bahia não tem muita alternativa para as pessoas se sustentarem, o que eles podiam fazer é trabalhar com o dendê ou cacau, mas estas culturas estão enfraquecidas atualmente. Então, não resta outra alternativa senão migrar para outros locais em busca de seu sustento”, analisa Rodrigo.
A forma de exploração dos trabalhadores já começava a se configurar logo na saída da Bahia: as vítimas já chegavam às fazendas devendo o dinheiro da passagem de ônibus.
Do total de trabalhadores libertados, um grupo de 39 trabalhava nas fazendas Armani e Mundo novo, dos parentes Laurindo e Nelsinho Armani, respectivamente. Os trabalhadores estavam abrigados em três residências sem estrutura mínima para a habitação. No local não havia sequer camas. Os empregados tinham disponível somente um banheiro, em péssimo estado de limpeza.
Na fazenda Jundiá, que pertence à Celso Brioschi, a situação dos 38 empregados libertados pela fiscalização era ainda pior. O empregador não disponibilizava instalações sanitárias ou local adequado para as refeições aos empregados. As 38 vítimas contavam com nada mais nada menos que uma única casa para abrigo, que, além de superlotada, encontrava-se em situação precária. Além disso, o grupo era obrigado diariamente a se deslocar cerca de 4 km a pé até as frentes de trabalho.
Os três empregadores utilizavam a servidão por dívida para impedir que os trabalhadores deixassem as fazendas antes do final da safra. Além de descontar os valores referentes à alimentação e Equipamentos de Proteção Individual (EPI) dos salários dos empregados, os fazendeiros também retiveram as Carteiras de Trabalho e da Previdência Social (CTPS) dos trabalhadores.
Para agravar a situação, não só os fazendeiros faziam desconto nos salários das vítimas: o “gato” também ficava com até R$ 2 por saca de café colhida.
“Muitos trabalhadores voltam sem nada para Bahia, é tanto desconto que eles não conseguem voltar com dinheiro para ajudar a família. Muitos dependem do Bolsa Família”, pontua o auditor fiscal da SRTE/ES Rodrigo Carvalho.
Carvalho afirma que os três empregadores já haviam sido autuados anteriormente por problemas trabalhistas nas propriedades. “Gostaríamos de ter pernas para fiscalizar a região toda, com certeza teríamos libertado muito mais trabalhadores”, explica Rodrigo.
Após a ação dos fiscais, os fazendeiros pagaram os valores referentes às verbas rescisórias e custearam o retorno dos trabalhadores aos seus municípios de origem. Os dois processos foram conduzidos pelo procurador do Trabalho Bruno Gomes Borges da Fonseca, lotado na Procuradoria do Trabalho em São Mateus (ES).
Fazenda Araponga
A quarta fiscalização, também motivada por uma denúncia de outro trabalhador, encontrou 15 pessoas em condições de trabalho análogas à escravidão na fazenda Araponga, em Marechal Floriano (ES). A situação era muito semelhante à verificada nos três empreendimentos citados anteriormente.
Os trabalhadores foram aliciados em Tancredo Neves (BA) e já chegaram à Marechal Floriano devendo a passagem de ônibus (R$ 162). Além disso, o empregador Marcelo Krohling reteve as Carteiras de Trabalho e da Previdência Social (CTPS) das vítimas, que ficavam impedidas de deixar o local antes do fim da colheita. A operação que fiscalizou a Araponga teve início no dia 29 de junho.
A fiscalização também constatou servidão por dívida na fazenda, já que os empregados – além de iniciar os trabalhos devendo os custos das passagens de ônibus -, tinham que pagar pelos EPIs e alimentos. Os equipamentos eram comprados em um mercado próximo à propriedade, no sistema “fiado”, mediante o qual as compras eram anotadas e seriam posteriormente subtraídas da remuneração dos trabalhadores.
“Um agravante nesta operação era o frio, uma vez que esse município fica na região Serrana do estado. Os trabalhadores estavam sem cobertores e até doentes, sem nenhuma assistência nenhuma por parte do empregador. Alguns trabalhadores tiveram que ser internados, diante da gravidade do estado de saúde”, relata Carvalho, da SRTE/ES.
Os trabalhadores utilizavam o mato como banheiro e consumiam a água do riacho, em um copo que era dividido pelo grupo todo. E, apesar do frio, os empregados tomavam banho em um córrego.
Os fiscais apuraram que as vítimas realizavam apenas uma refeição diária, preparada por eles. Na ocasião, foi constatado que alguns trabalhadores almoçavam na frente de trabalho, comendo apenas arroz com farinha.
O duro quadro encontrado completava-se pela ausência de sanitários nas frentes de trabalho, bem como de locais para refeições e de água potável para o consumo dos empregados. A jornada de trabalho era exaustiva, iniciando-se às 7 horas da manhã e estendendo-se até às 17 horas.
Ao término da inspeção, o empregador pagou as passagens de volta para a cidade de origem dos trabalhadores e as verbas referentes à rescisão do contrato de trabalho, num total de mais de R$ 34 mil.
Antonio Carlos Lopes Soares, lotado na Procuradoria Regional do Trabalho de Vitória (ES), está aguardando a remessa do relatório da SRTE/ES para ingressar com Ação Civil Pública referente ao caso.
Até o fechamento desta matéria, a Repórter Brasil não conseguiu contatar os fazendeiros.

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