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23 de setembro de 2015

Sakamoto fala na ONU sobre o papel das empresas no combate ao trabalho escravo

O jornalista Leonardo Sakamoto, Membro do Conselho de Curadores do Fundo das Nações Unidas sobre Formas Contemporâneas de Escravidão, participou do evento “Acabando com Formas de Escravidão Contemporânea em Cadeias Produtivas”, realizado durante a 30ª reunião do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra, na Suíça, no último dia 16 de setembro.
No evento, também foi apresentado o relatório de Urmila Bhoola, Relatora Especial sobre formas contemporâneas de escravidão. O material servirá de base para as discussões que ocorrerão em 2016, durante a Conferência Internacional do Trabalho, promovida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) que tratará sobre cadeias produtivas.
Conforme publicou o site da Repórter Brasil, o “objetivo foi discutir estratégias efetivas e recomendar medidas concretas aos países e ao setor empresarial para prevenir e erradicar esse crime, bem como garantir assistência às vítimas. O que incluiu a discussão de padrões legais, políticas públicas, marcos legais e dificuldades de implementação de tudo isso por falta de apoio ou recursos financeiros”.  Leia abaixo os pontos apresentados por Leonardo Sakamoto na 30ª reunião do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas:

A cada ano, gastamos milhões de dólares em programas de prevenção e combate ao trabalho escravo, não raro ignorando a opinião dos verdadeiramente interessados: as vítimas e suas comunidades. Que entendem melhor do que ninguém sua própria realidade e são capazes de apontar soluções, incluindo ações para a sua autonomia econômica e a participação em cadeias produtivas limpas.

Projetos assim são anualmente submetidos ao Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão, fundado em 1991 pela Assembleia Geral da ONU e mantido pelo Escritório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos em Genebra.

O Fundo concede doações a projetos de organizações que fornecem auxílio humanitário, jurídico e financeiro a indivíduos cujos direitos humanos foram violados como resultado de formas contemporâneas de escravidão.

Ele é único dentro do sistema das Nações Unidas. Sua abordagem centra na vítima, permitindo canalizar recursos para os que mais precisam de assistência, como grupos sociais vulneráveis, muitos dos quais crianças, mulheres e minorias. Ele também dá oportunidades para ONGs, frequentemente trabalhando na base, auxiliarem diretamente um grande número de vítimas com quantias relativamente pequenas de recursos.

O Fundo auxilia um amplo espectro de vítimas de escravidão, servidão, trabalho forçado, piores formas de trabalho infantil, servidão infantil, tráfico de pessoas, escravidão sexual, casamento forçado, venda de esposas e outras formas de escravidão.

Infelizmente, apesar da necessidade premente de apoiar organizações que realizam trabalhos significativos e de impacto para ajudar vítimas de trabalho escravo, o Fundo, que é abastecido com contribuições voluntárias de governos, organizações não governamentais e outras entidades públicas ou privadas, encontra-se num nível perigosamente baixo de financiamento e, desta forma, não consegue dar conta dos pedidos de auxílio recebidos anualmente. Por exemplo, a região de onde venho, o continente americano, pouco tem contribuído para a sua manutenção, apesar de estimativas da Organização Internacional do Trabalho apontarem para um total de mais de 1,8 milhões de escravos vivendo por lá.

O que me lembra um verso de Cecília Meireles, famosa poeta brasileira: “Todos querem a liberdade. Mas quem por ela trabalha?”

Com isso em mente, gostaria de saudar o importante trabalho da Relatora e tecer alguns comentários sobre cadeias produtivas do trabalho escravo, uma vez que me dedico a essa área há 16 anos. Para isso, trago um pouco da experiência brasileira.

Após décadas de pressão da sociedade civil, que desde 1970, denunciava sistematicamente a ocorrência de trabalho escravo contemporâneo, o governo brasileiro reconheceu diante das Nações Unidas a existência dessa forma de exploração em seu território em 1995. Naquele ano, foi estabelecida a política pública contra essa violação de direitos humanos, baseada em grupos de inspeção do trabalho, que contam com a presença de policiais e procuradores. Eles investigam denúncias, libertam trabalhadores, obrigam o pagamento de salários e direitos trabalhistas e dão início a processos para compensação aos trabalhadores ou punição criminal aos envolvidos.

Desde então, cerca de 50 mil trabalhadores foram resgatados. Pessoas e corporações flagradas se beneficiando de trabalho escravo passaram, em 2003, a serem inseridos em um cadastro público de transparência, chamada de “lista suja”, estabelecida por um decreto ministerial. Após terem o direito à defesa administrativa em duas instâncias, permaneciam por dois anos na lista, período em que deveriam quitar os débitos com os trabalhadores e o Estado e garantir que não houvesse reincidência desse crime.

A base de dados era utilizada por dezenas de companhias públicas e privadas que assinaram o Pacto Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, aplicando sanções comerciais e financeiras. Em dezembro de 2014, o Supremo Tribunal concedeu uma liminar a uma associação de empresas de construção suspendendo a lista. Até o momento, advogados do governo federal não conseguiram restabelecê-la.

Porém, organizações da sociedade civil, utilizando a Lei de Acesso à Informação, reconstruíram e relançaram a lista a fim de manter a transparência sobre casos de trabalho escravo. Essa “nova lista” tem sido utilizada por várias companhias para análise de risco e bloqueio daqueles que utilizaram trabalho escravo.

No Brasil, quando uma empresa de capital aberto era inserida na atualização semestral da “lista suja”, suas ações sofriam significativas quedas na Bolsa de Valores. Foi assim com grandes empresas produtoras de açúcar e álcool ou grandes construtoras, por exemplo. Sem acesso a crédito e com a marca sofrendo o impacto negativo na mídia, investidores passavam a pressionar a corporação a adotar políticas para evitar que o problema voltasse a acontecer. Temos casos de cadeias produtivas que melhoram significativamente por conta disso.

O engajamento da maior parte das empresas não foi de livre e espontânea vontade, mas decorrente de pressão através de denúncias da imprensa e da sociedade civil, que mostraram a contaminação de suas cadeias. Também foram importantes para esse envolvimento a aprovação de leis de confisco de propriedades e de cassação de registro caso as empresas sejam flagradas com esse crime, por exemplo.

Nesse sentido, duas importantes leis foram recentemente aprovadas: uma, do Estado de São Paulo, o mais rico do país, banindo por dez anos a empresa que se beneficiar de trabalho escravo. E uma lei federal que prevê o confisco sem indenização de propriedades rurais e urbanas onde trabalho escravo foi flagrado, destinando-as à reforma agrária ou a programas de habitação. Já há processos abertos que citam essas leis esperando resposta da Justiça.

Esses elementos de denúncia e punição fomentaram um comportamento de investidores que passaram a ver o risco de danos às marcas envolvidas após denúncias virem a público. Porque o simples boicote de consumidores tem influência apenas de curto prazo ou nem isso. Na maior parte dos casos, políticas corporativas de combate ao trabalho escravo são adotadas apenas quando há risco real de perda econômica para um empreendimento.

Por isso, vemos com preocupação o desenvolvimento de políticas de combate ao trabalho escravo em cadeias produtivas em que o Estado e a sociedade civil são deslocados do papel de protagonistas para o de coadjuvantes das empresas.

O Poder Executivo deve se assumir como protagonista desse processo, garantindo não apenas uma inspeção do trabalho independente e com poder de polícia administrativa, mas também políticas de prevenção ao trabalho escravo – o que inclui o combate à pobreza e o oferecimento de oportunidades de efetivação da cidadania.

Ao mesmo tempo, o Poder Judiciário e o Ministério Público devem denunciar e julgar o envolvimento de empresas, impondo a elas significativas condenações em valores que tornem o trabalho escravo um mau negócio. E o Poder Legislativo deve aprovar leis que punem empresas e investidores que se beneficiem desse tipo de exploração.

Auditorias independentes, auto-regulação e autodeclaração não garantem a mesma qualidade de monitoramento e controle que a ação de fiscais do trabalho e de leis que garantam punição a quem se beneficia do lucro desse tipo de exploração.

Além disso, o poder público deve trazer para dentro do monitoramento dessa política a sociedade civil organizada, apoiando ações desenvolvidas por ela – como foi o caso, no Brasil, do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, citado como exemplo pela relatora em seu relatório – e protegendo-a dos ataques de setores do empresariado que não ficarão satisfeitos com as mudanças. Digo isso por experiência própria, uma vez que tenho sido alvo de ameaças e processos legais por conta da atuação de nossa organização no combate ao trabalho escravo em cadeias produtivas no Brasil.

Tenho plena consciência da dificuldade desse processo, ainda mais porque há Estados praticamente reféns de determinados setores econômicos ou de empresas nacionais e internacionais, seja através do financiamento de seus governantes e parlamentares, seja pelo controle da economia.

Mas, vale lembrar, que boa parte do problema está inserido em cadeias produtivas globais, que não começam e terminam em determinado país. Se a ação de consumidores de celulares pressionando investidores e desenvolvedores de um lado do mundo pode levar à melhoria da qualidade de vida de operários envolvidos em sua fabricação do outro lado, imagine o que não conseguiríamos com a criação de tratados e princípios obrigatórios, sob pena de sanção econômica, a empresas lenientes com o trabalho escravo?

Por isso, vejo com bons olhos o debate que vem sendo travado para criar um tratado vinculante em que empresas sejam obrigadas a adotar critérios mínimos de direitos humanos – que devem incluir formas contemporâneas de escravidão. Em junho de 2014, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou a resolução 26/9, que estabeleceu um Grupo de Trabalho Intergovernamental aberto para debater um instrumento juridicamente vinculante sobre empresas e direitos humanos.

No entanto, nenhuma política para cadeias produtivas terá sucesso sem a ação dos Estados e da comunidade internacional e a punição do capital diretamente envolvido. Pois trabalho escravo não é um desvio moral, mas um instrumento para facilitar a competitividade e a obtenção de lucro.

Sabemos que esse processo é dialético. No Brasil, onde ocorreram avanços, a ação de políticos conservadores e o contra-ataque de determinados grupos empresariais estão minando as bases da política de combate ao trabalho escravo em cadeias produtivas. Seja conseguindo a suspensão da lista de transparência, seja tentando derrubar as leis que definem e punem trabalho escravo.
Com a iminência da adoção da Agenda 2030 para Desenvolvimento Sustentável (2030 Agenda for Sustainable Development), é importante renovar nosso compromisso de erradicar o trabalho escravo contemporâneo, o trabalho forçado, o tráfico de seres humanos.

Contudo, analisando o cenário atual, em que parte das políticas públicas que reafirmam esse combate mais se assemelham a ações de greenwashing adotadas por grandes corporações para se esquivar de mudar sua forma de produção ou diminuir a sua lucratividade, não acredito que atingiremos a meta em 2030. Nem em 2050. Talvez, se a mudança climática permitir e ainda tivermos um planeta, em 2100.

Trabalho escravo não é uma doença e sim um sintoma. A experiência brasileira mostra que não é possível erradicar o trabalho escravo sem atacar, além da impunidade, a situação socioeconômica dos trabalhadores. Ou seja, a erradicação do trabalho escravo depende de quanto os governos dos países desenvolvidos, principais beneficiários do sistema econômico global, estarão interessados em reduzir significativamente a pobreza no países pobres. Creio que uma pequena parcela dos recursos envolvidos na promoção de conflitos armados ou na guerra às drogas já seria suficiente.

No Brasil, o Assentamento Esperança, no município de Monsenhor Gil, um dos mais pobres do país, foi criado por trabalhadores resgatados do trabalho escravo. Sua vida não é perfeita, mas a autonomia que conquistaram, produzindo e vendendo sua produção, lhes dá uma oportunidade de escolher. Poder que eles não tinham antes.

Baseado na experiência brasileira, enquanto não curamos o doente por completo, há alguns elementos que devem ser observados para diminuir o problema atuando nas cadeias produtivas:

1) Um sistema de inspeção do trabalho público e de qualidade é fundamental para identificar atores econômicos envolvidos com trabalho escravo;

2) Uma lista patrocinada pelo Estado ou com informações do Estado, garantindo transparência aos nomes dos envolvidos, é a base para a criação de políticas corporativas efetivas para o combate ao trabalho escravo. A realização e divulgação de pesquisas identificando as cadeia produtiva de atores envolvidos com trabalho escravo tem o potencial de envolver consumidores no combate a esse crime. Pois não existe consumo consciente sem informação de qualidade;

3) A parceria entre organizações da sociedade civil, sindicatos e a imprensa é fundamental para monitorar o comportamento do governo e do setor empresarial. O Ministério Público e a Justiça devem atuar na imposição de compensações proporcionais ao faturamento das empresas flagradas com trabalho escravo;

4) Boicote não funciona no longo prazo. O que percebemos no Brasil é que, ao denunciar uma empresa por envolvimento direto ou indireto em trabalho escravo, isso gerava uma repercussão na imprensa. Comentários negativos começavam a circular na sociedade e em redes sociais, aumentando a percepção de risco a determinada marca por parte de investidores, acionistas ou parceiros comerciais. São eles, e não os consumidores finais, que são a peça-chave. Com medo de que a denúncia significasse depreciação de seu investimento, movimentações ocorriam na Bolsa de Valores ou junto aos acionistas. Isso gerava uma janela de oportunidade em que a empresa, preocupada com a situação, procurava dar uma resposta à sociedade, abrindo a possibilidade da implantação de políticas corporativas. A janela é de curta duração, pois o consumidor esquecerá, a imprensa trará outro escândalo e o investidor recuperará a confiança. Mas, se bem usada, pode significar mudanças significativas.

Concluo com uma opinião estritamente pessoal. Sonho com o dia em que a Organização Internacional do Trabalho e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos tenham o mesmo poder da Organização Mundial do Comércio ou do Fundo Monetário Internacional. Pois sabemos que há uma escala de valores que não será alterada enquanto o capital for livre para correr globalmente, mas os trabalhadores serem barrados em fronteiras ou se afogarem no mar.

 
* Com informações de Repórter Brasil
Imagem: Divulgação/ONU
 
 

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