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15 de junho de 2009

Após flagra de escravidão, ex-ministro Cabrera ataca fiscais

Figura de destaque entre produtores rurais, Antonio Cabrera foi ministro da Agricultura do governo Collor. Em abril deste ano, fiscais encontraram 184 trabalhadores escravos na sua fazenda de cana em Limeira do Oeste (MG)

Por Maurício Hashizume*

O roteiro é conhecido. Depois do flagrante de trabalho escravo, o fazendeiro responsável vem a público declarar que não houve irregularidades, que todos os empregados viviam em condições exemplares, que a fiscalização foi “arbitrária”, “truculenta” e “ideológica”, que a legislação é vaga (e a interpretação da mesma acaba sendo “subjetiva”) e que está sendo injustiçado.
Incomum é o fato de que esse discurso esteja na boca de um ex-ministro. Aliás, de um ex-ministro da Agricultura. Em entrevista à Repórter Brasil, Antonio Cabrera, que foi chefe da pasta durante o governo Fernando Collor de Melo (hoje senador) entre 1990 e 1992, classificou a libertação de 184 trabalhadores da sua Fazenda Bela Vista, em Limeira do Oeste (MG), no Triângulo Mineiro, no último mês de abril, como “propaganda enganosa e mentirosa”.
“Não vejo nenhuma irregularidade”, sustenta Antonio Cabrera, que está à frente de um projeto sucroalcooleiro na região (Cabrera Central Energética Açúcar e Álcool), em parceria com a norte-americana Archer Daniels Midland (ADM), para a produção de etanol. Os 46 autos de infração aplicados pelos fiscais da Superintendência Regional de Trabalho e Emprego de Minas Gerais (SRTE/MG) – que estiveram acompanhados do procurador Eliaquim Queiroz, do Ministério Público do Trabalho (MPT) e de agentes da Polícia Federal (PF) – não passam, segundo o ex-ministro, de “uma questão de interpretação”. “A legislação, às vezes, é vaga, subjetiva. Fica a critério de algum auditor interpretar a lei da maneira que ele acha que deve ser interpretada”, complementa.
A “subjetividade” alegada pelo empregador se choca com a descrição das condições de trabalho por parte da fiscalização do Trabalho e pelo histórico recente da propriedade. De acordo com os fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), empregados viviam em alojamentos precários e superlotados, chegaram a ser submetidos a jornadas de até 33 horas, estavam com suas Carteiras de Trabalho e Previdência Social (CTPS) retidas pelo empregador há mais de um mês, não tinham acesso à água potável, eram levados às frentes de trabalho por transporte irregular, tinham dificuldade em descontar os cheques dos salários, não dispunham de todos equipamentos de proteção individual (EPIs) exigidos, corriam riscos de acidentes e tinham que adquirir suas próprias ferramentas de trabalho, entre outras irregularidades.
Houve seis interdições. O corte e plantio manual de cana-de-açúcar foram impedidos, pois na avaliação dos fiscais havia risco “grave e iminente” de danos à saúde e à vida dos trabalhadores. Também foram interditados dois ônibus utilizados no transporte dos empregados, diversos equipamentos usados na lavoura e uma edificação destinada ao armazenamento de agrotóxicos.
O “conjunto de elementos” permitiu a caracterização do trabalho análogo à escravidão, atesta o auditor José Giovani Andrade. Ele atuou como um dos coordenadores da equipe que verificou a situação tanto nas frentes de trabalho (de corte e plantio de cana, além das atividades de catação de raízes e pedras, nas Fazendas Santa Fé e Boa Esperança, arrendadas pela empresa de Antonio Cabrera) como nos alojamentos, nas oficinas e nos locais de armazenamento de agrotóxicos (na sede da Fazenda Bela Vista).
Parte dos problemas encontrados pela fiscalização que durou de 14 até 27 de abril deste ano já havia sido flagrada em 15 de maio do ano passado, quando 11 autos de infração (relativos à não disponibilização de água potável, aos alojamentos inadequados, à falta de equipamentos, a problemas no transporte e no armazenamnto de agrotóxicos, entre outros itens) foram lavrados. O próprio ex-ministro Antonio Cabrera assinara um termo de compromisso em 15 de maio de 2008 com promessas de melhorias nas condições de trabalho.
“A fiscalização é bem-vinda no sentido sempre de verificar o cumprimento das obrigações previstas em leis por qualquer empresa. A colocação que faço é que, principalmente em Minas Gerais, o Ministério do Trabalho ou o Ministério Público do Trabalho nunca visitaram qualquer empresa antes da fiscalização, no intuito de se fazer uma orientação, um processo educativo”, declarou Antonio Cabrera à Repórter Brasil. Perguntado sobre o acordo prévio sobre as condições de trabalho, o ex-ministro foi evasivo. “Isso foi (referente a) um terceiro que prestava serviço à fazenda. Nós tivemos uma ata de audiência em que eles pediram que nós não promovêssemos mais a contração de terceiros. Até então, não se sabia se poderia terceirizar ou não. Isso foi feito. E os nossos alojamentos na Fazenda Bela Vista sempre foram adequados”.
Segundo os fiscais, 67 trabalhadores viviam em cinco casas que estavam sendo utilizadas como alojamentos. Cômodos construídos para abrigar a cozinha e a sala de estar estavam sendo utilizados como quartos. O empregador mantinha ainda uma outra casa na localidade conhecida como Valente, onde permaneciam outras 13 pessoas, também em situação grave. Mesmo que condizentes em termos de estrutura, os fiscais relataram que as construções se achavam em “precaríssimas condições de conservação, manutenção, higiene e limpeza, caracterizando dessa forma submissão dos trabalhadores nelas instalados a condições degradantes de alojamento e de vida”.
Além das condições irregulares de higiene e limpeza (os banheiros tinham “odor fétido”, segundo os fiscais que assinam os autos), as instalações elétricas eram precárias, o que elevava o risco de acidentes e incêndios. Por causa da ausência de armários, objetos pessoais eram pendurados em varais improvisados ou no chão mesmo, em caixas de papelão ou em sacolas. Não havia acesso à água potável nas casas que abrigavam os trabalhadores.
Como as pessoas trabalhavam de domingo a domingo em apenas dois turnos (dia e noite), era normal que parte delas cumprisse jornada de até 18h na troca de turnos. Eles tinham “folga” apenas nos dias de chuva. Em dias normais, a maioria enfrentava uma rotina que começava por volta das 6h30 e terminava depois das 19h. Havia indícios de que as horas extras não eram devidamente pagas. Documentos apresentados à fiscalização mostram que alguns operadores de máquina chegavam a enfrentar jornadas de até 33h.
Os fiscais constataram ainda a retenção de documentos: 44 carteiras de trabalho (CTPSs) foram encontradas em poder da responsável pelos recursos humanos na planta industrial da Cabrera Central Energética Açúcar e Álcool no dia 14 de abril. A maioria dos empregados tinham sido recrutados em março e estava há pelo menos um mês sem a CTPS, que deve ser devolvida dentro de um prazo de 48h pelo contratante ao contratado.
Além da retenção, os trabalhadores enfrentavam outro problema. Eles recebiam os salários em cheque e, por causa da extensa jornada, não tinham tempo nem meios (não havia transporte providenciado pelo empregador em dia útil) para descontar os vencimentos no banco. Segundo depoimentos dos empregados de Antonio Cabrera, essa complicação fazia com que cheques fossem descontados no comércio próximo das residências dos trabalhadores. Nessa troca, parcela do salário era subtraída pelos comerciantes.
O ex-ministro responde à acusação específica da questão do cheque de forma irônica. “Onde que o pagamento em cheque está limitando o funcionário a usar o salário dele? Vou pagar em dinheiro? Aquela fazenda já foi assaltada diversas vezes! Aliás, eu fiquei contente, porque nunca a polícia tinha aparecido lá. Quando foi a PF, eu falei: ´Bom, pelo menos nesta semana da fiscalização vamos poder ficar tranqüilos que não seremos assaltados´”.
Mais problemas
Outros problemas graves também foram identificados na Fazenda Bela Vista: dois dos três ônibus vistoriados simplesmente não tinham autorização para fazer o transporte coletivo de passageiros. Um dos motoristas que fazia o serviço também não estava habilitado para a função. O empregador ainda mantinha uma trabalhadora sem registro que lavava as roupas utilizadas pelos empregados que aplicavam agrotóxicos no cultivo da cana.
Não havia fornecimento de água potável (reservatórios de água instalados nos ônibus eram abastecidos com água da torneira pelos próprios motoristas) e nem havia instalações sanitárias nas diversas frentes de trabalho.
O empregador tampouco disponibilizava local ou recipiente para a conservação de refeições. Muitos utilizavam, segundo a fiscalização, “marmitas comuns, de metal, de preço mais accessível, elevando sobremaneira o risco de deterioração da comida consumida e, portanto, de agravos à saúde, em especial quadros infectocontagiosos, tais como diarréias e gastrenterites”.
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Trabalhadores que faziam a “retampa” das mudas de cana plantadas mecanicamente, na Fazenda Santa Fé, utilizavam enxadas compradas com seu próprio dinheiro. Facões e limas dos cortadores de cana crua destinada ao plantio também eram emprestados ou de propriedade dos empregados. Houve flagrante ainda de risco de queda de empregados do caminhão utilizado no plantio.
Havia fornecimento de apenas alguns equipamentos de proteção individual (EPIs) e a substituição das peças não era feita regularmente.

Polêmica
“Não utilizei [mão-de-obra escrava], não utilizo e nunca vou utilizar. Estamos há mais de 50 anos naquela região. Nunca tivemos nenhum problema nesse sentido. É uma irresponsabilidade do Ministério [do Trabalho] fazer esse tipo de propaganda enganosa e mentirosa. Você tem que ser julgado primeiro para que se possa fazer essa declaração”, declara Antonio Cabrera, que também foi secretário estadual da Agricultura do tucano Mario Covas (1995-2001).
“Se tivesse trabalho escravo, por que a maioria dos funcionários continuou trabalhando na empresa? Aqueles que quisessem sair receberiam uma indenização. Ninguém por sã consciência ficaria no trabalho como escravo ou em condições degradantes”, argumenta o ex-ministro. “Se era trabalho escravo, por que a Justiça do Trabalho na região homologou um acordo permitindo a permanência dos funcionários? Ninguém em sã consciência iria deixar que trabalhadores continuassem no local que fosse trabalho escravo. Eles deveriam ser imediatamente libertados… Acho isso uma irresponsabilidade. A média salarial era de mais de R$ 1,1 mil por mês”.
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A possibilidade de permanência dos trabalhadores foi acertada em audiência entre o empregador, o juiz substituto do Trabalho do Posto Avançado de Iturama (MG), Alexandre Chibante Martins, e o procurador do Trabalho Eliaquim Queiroz, do Ofício de Uberlândia (MG).
Eliaquim reafirma que as condições encontradas foram análogas à escravidão, mas define a operação como “complexa” e “excepcional”. Segundo ele, o acordo que acabou permitindo que os próprios trabalhadores optassem pelo resgate ou pela permanência se deu em respeito ao “direito social ao emprego”. Ele afirma que parte das pessoas, que são todas da região do empreendimento e não foram aliciadas, de fato não queria deixar o emprego porque, mesmo com as condições descritas, ganhavam salários relativamente altos.
No entendimento do procurador e do juiz que referendaram o acordo, uma vez corrigida a situação encontrada, os trabalhadores teriam direito a continuar trabalhando. Mesmo assim, corrigindo as declarações de Antonio Cabrera, ele ressalta que a maioria (99) preferiu ser “resgatado” pela fiscalização.
Diversos trabalhadores relataram que no dia 24 de abril, durante o processo de fiscalização, o empregador foi buscar os empregados em suas casas e realizou reunião na sede da Fazenda Bela Vista, em que fez pressão para que as pessoas recusassem a rescisão do contrato de trabalho e “alertou” sob dificuldades futuras para a obtenção de empregos na região.
Com vistas a garantir o pagamento dos trabalhadores diante de atitudes protelatórias do empregador, o procurador Eliaquim chegou a apresentar uma ação civil pública emergencial. Em consequência dessa pressão, ficou acertado o pagamento de R$ 255 mil de danos morais individuais e de R$ 125 mil em danos morais coletivos. “Não conseguimos resolver do ponto de vista administrativo. Não tinha outra saída senão recorrer à Justiça. Pretendíamos que eles efetuassem a rescisão de todos. Mas ainda é cedo para avaliar se isso vai trazer prejuízos”, emenda o auditor do Trabalho José Giovani.
A Bela Vista reúne 270 empregados. Segundo Eliaquim, que também participou da fiscalização em 2008, a situação encontrada naquela ocasião “já era grave”. “Foi uma fiscalização rápida e sem muita estrutura. Não estávamos preparados para promover o resgate dos trabalhadores”, conta. O procurador aguarda o relatório dos fiscais do MTE para tomar medidas adicionais acerca do caso Cabrera.
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Para Antonio Cabrera, um dos principais nomes do empresariado rural paulista, há uma suposta “ideologização” das inspeções. “Não podemos ter a ideologia. Quando parte para a emoção, as coisas tomam um rumo que não faz bem para ninguém, muito menos para o país”, alega.
“Na atividade rural um dos serviços mais duros, infelizmente, é o trabalho com a cana. É um trabalho mais rústico do que a pecuária e a soja. Exige uma força física maior do trabalhador. Temos que achar algumas maneiras de atenuar isso. No nosso caso, estamos passando 100% para a mecanização. Não vai ter outra solução. Só acho que o Brasil está dando um passo muito rápido”, divaga o ex-ministro. Ele recomenda uma análise mais cuidados dos “números de libertação” do MTE. “Não sei se eu vou estar nessa estatística. Se tiver, é uma estatística irregular”, contesta. Processo administrativo sobre o flagrante envolvendo o representante do segmento ruralista foi aberto no Executivo federal.
Além do desgaste público, o caso representa uma ameaça para os negócios do ex-ministro. A fazenda autuada será uma das fornecedoras da usina Cabrera Central Energética Açúcar e Álcool, em fase final de construção em Limeira do Oeste. O empreendimento faz parte de uma joint venture formada em novembro do ano passado com a ADM para a produção de etanol. Tradicional em grãos, a ADM já é líder na produção de álcool à base de milho nos EUA.
Um dos sócios majoritários do empreendimento, Antonio Cabrera desembolsou R$ 50 milhões apenas na área agrícola da usina. O investimento também marca a entrada do conglomerado no setor – o Grupo Cabrera tem histórico no cultivo de grãos e na pecuária. O início da moagem na nova usina deve se dar em agosto e a capacidade de produção será de dois milhões e meio de toneladas na fase final. O acordo prevê ainda a construção de outra unidade em Goiás.
Acossado por denúncias trabalhistas que envolvem os seus negócios privados, Antonio Cabrera descarta um retorno à vida pública. Mais jovem ministro da história do país – ele assumiu a pasta da Agricultura no governo Collor (1990-1992) aos 29 anos -, a sua última investida na disputa política foi em 2002. Na ocasião, candidatou-se ao governo de São Paulo pelo PTB, mas não conseguiu passar do primeiro turno. Na etapa seguinte, apoiou José Genoino (PT), que acabou derrotado por Geraldo Alckmin (PSDB).
O ex-ministro chegou a ser uma das principais lideranças do PFL-SP (atual DEM), mas hoje diz que não é filiado a nenhum partido. “Estou tentando sobreviver como um produtor de cana-de-açúcar”, disse ao final da conversa com a Repórter Brasil, que durou cerca de uma hora e foi feita por telefone desde o seu escritório em São José do Rio Preto (SP), interior paulista.
Ele afirma que o caso hoje é uma “página virada” que tenta esquecer. “Não acho que tenha efeito pedagógico ou traga algum tipo de benefício. Muito pelo contrário”, avalia. “Quem paga a honra e o nome da gente que fica enlameado nisso tudo?”. Mas apesar de refutar o corolário de irregularidades, ele admite que o Grupo Cabrera ainda não tem know-how no ramo da cana e entra em contradição com o próprio discurso. “Estamos dispostos a cumprir [as exigências]. Viemos da pecuária. Então estamos até aprendendo”.
*Colaborou Maurício Reimberg

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