No Brasil, Prêmio Nobel da Paz fala sobre trabalho infantil e escravo
Em visita ao Brasil, um dos mais importantes ativistas da atualidade, o prêmio Nobel da Paz de 2014, Kailash Satyarthi, foi recebido em um evento promovido por organizações da sociedade civil e órgãos de governo empenhados no enfrentamento do trabalho escravo: Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, InPACTO, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Organização do Internacional do Trabalho (OIT) e Superior Tribunal de Justiça (STJ). O evento aconteceu na quarta-feira 27 no auditório da FecomercioSP, que apoiou a iniciativa.
Em um auditório lotado, o público presenciou momentos intensos, nos quais Satyarthi relatou seu empenho na luta em defesa dos direitos humanos, contra o trabalho infantil e o trabalho escravo. Durante a conversa, Satyarthi anunciou que em breve vai lançar uma campanha mundial que tem tudo para ser a maior mobilização dos direitos humanos realizada no planeta. É a A Hundred Million for A Hundred Million (em português, Cem Milhões por Cem Milhões), que pretende mobilizar cem milhões de pessoas para tirar cem milhões de crianças do trabalho infantil. “É uma campanha grande e ambiciosa, mas que tenho certeza que podemos fazer”, comentou. A iniciativa será inspirada na Marcha Global contra o Trabalho Infantil, a qual Satyarthi organizou em 1997.
O ativista lembrou que há dois anos esteve na Costa do Marfim. Em uma vila muito antiga, encontrou um grupo de jovens com braços e pernas marcados por ferimentos e cicatrizes. Ao perguntar o que havia acontecido, um dos garotos respondeu: “É resultado do meu trabalho na fazenda de plantação de cacau”.
O cacau, principal ingrediente do chocolate, um dos produtos mais vendidos no mundo, símbolo do amor no dia dos namorados, símbolo da alegria, estava sendo plantado com o sofrimento daquelas crianças. O mais doloroso ainda estava por vir. Ao perguntar para o menino se ele gostava de chocolate, Satyarthi escutou: “o que é chocolate? ”.
“É uma indústria que movimenta bilhões de dólares no mundo. Não nos envergonha ouvir isso?”, indagou Satyarthi, que também lembrou sobre o trabalho de crianças na fabricação de bolas de futebol, no Paquistão.
“O que seria maior pecado do que proibir uma criança de brincar? O que seria crime maior do que proibir a liberdade, que é o melhor presente divino a todos nós, humanos ou animais?”, questionou Satyarthi. “Eu acredito fortemente que cada problema tem uma solução. Nós devemos ser compassivamente inteligentes, não apenas inteligentes. Assim, com compaixão, você consegue resolver qualquer problema no mundo”.
Para o Prêmio Nobel, economia não é um fim e sim um meio. “As empresas não são máquinas de fazer dinheiro. Elas têm um papel social muito forte a cumprir, maior do que a obtenção de lucro. Lucro é apenas um dos objetivos que elas deveriam ter”, afirmou. Ele citou também as organizações da sociedade civil como atores importantes neste processo como parceiras na construção de políticas públicas. “Política não é só ter poder, é oferecer um meio para que o país possa evoluir e permitir o desenvolvimento dessa sociedade”, declarou.
Na avaliação de Satyarthi, o Brasil tem todos os ingredientes para fazer com que o trabalho infantil se torne coisa do passado. “Vocês têm muitas leis que muitos países não têm. E os últimos dez ou quinze anos mostraram como políticas públicas como o Bolsa Família podem dar retorno. Vocês têm uma base de proteção social e outras atividades desenvolvidas em um nível que eu nunca tinha visto no mundo. A Índia sonha com isso, definitivamente”.
Instituto Ethos
Durante o diálogo com o Prêmio Nobel, Jorge Abrahão, presidente do Instituto Ethos, lembrou as principais ferramentas de combate ao trabalho escravo criadas há mais de dez anos no Brasil, entre elas a Lista Suja e o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, e destacou a importância do envolvimento das empresas nessa luta. “Setores puxados por empresas que queriam avançar nesse processo conseguiram um impacto muito grande através de pesquisas nas cadeias de valor”, referindo-se ainda ao Pacto Nacional, que estimulou o engajamento das empresas. Segundo ele, “o grande desafio é convencer as empresas como agentes de transformação da sociedade”.
Conselho Nacional de Justiça
O conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Lelio Bentes, afirmou que o trabalho escravo é contrário a tudo que prevê o artigo 1 da Constituição Federal, que trata sobre “cidadania, dignidade e valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”. Para ele, “respeitar direitos humanos é ter a capacidade de se colocar no lugar do outro. É olhar para o outro e identificar um igual, com os mesmos direitos, direito às mesmas inspirações, direito de sonhar, direito a um tratamento digno”.
Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil
Marcos Fava, Membro da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil da Justiça do Trabalho, vinculada ao Conselho Superior da Justiça do Trabalho, defendeu a manutenção do artigo 149 do Código Penal. Para ele, “o tipo penal do Artigo 149 deve ficar como está. O trabalho degradante, a jornada exaustiva, o direito de ir e vir precisam continuar como está e o sistema judicial deve ser intransigente na sua manutenção e na sua mais severa interpretação”.
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
Também esteve presente no evento a ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello, que destacou que o Brasil é signatário de todas as convenções internacionais sobre trabalho infantil. Para ela, entre os fatores que deram ao país uma posição de destaque nas últimas duas décadas são: um marco legal bastante ousado, o reconhecimento do problema e o trabalho de levantamento de estatísticas, a definição de uma agenda de cooperação e criação de políticas públicas efetivas. “Muitos países não têm informações sobre trabalho infantil e por isso não aparecem na lista dos que possuem o problema, mas isso não quer dizer que eles não têm crianças trabalhando, apenas não possuem estatísticas sobre o trabalho infantil em seu território. O mesmo acontece com as leis. Em países que não tem um marco regulatório rígido sobre trabalho infantil, isso não é tido como crime”.
A ministra ainda apresentou dados atuais sobre o trabalho infantil no Brasil. “Antes as crianças trabalhavam para não morrer de fome porque as suas famílias viviam na miséria. Hoje, a renda per capita dessas crianças está acima de um salário mínimo. Não há bolsa família que resolva”. Segundo ela, apenas entendendo esse cenário é possível continuar trabalhando para saber onde o trabalho infantil atualmente se encontra. “Precisamos saber onde está esse jovem, se ele está trabalhando como empreendedor ou no negócio do pai. Não temos como continuar com o trabalho desprotegido de jovens entre 14 e 16 anos. Conseguimos reduzir os casos mais trágicos de trabalho infantil, mas temos que continuar trabalhando”, declarou.
Sebrae
Vânia Rego, do Sebrae Nacional, chamou a atenção para outros aspectos da temática do trabalho infantil e do trabalho escravo com uma marcante fala sobre as questões de gênero. “Não podemos deixar de falar que trabalho infantil e escravo são categorias de classe social. Os filhos das classes mais favorecidas não trabalham quando crianças, eles estudam e se empoderam para ocupar espaços. Não podemos esquecer que milhares de mulheres em todo o mundo, quando entram no mercado de trabalho, deixam os seus filhos desamparados ou, ao invés de os colocarem em espaços de proteção como a escola, acabam levando-os para os ambientes de trabalho degradante que elas ocupam”, ressaltou.
Organização Internacional do Trabalho
Luiz Machado, Coordenador Nacional do Programa de Combate ao Trabalho Forçado da Organização Internacional do Trabalho (OIT), destacou que o protocolo adicional à Convenção 29 “chama mais uma vez o mundo para acabar com os trabalhos forçados e suas variações contemporâneas. “Nós não sabemos o tamanho do problema. O trabalho escravo é ainda mais invisível que o infantil. É muito difícil resgatar as pessoas do trabalho escravo”, comentou citando as artimanhas que os empregadores fazem para mascarar o trabalho escravo.
Machado lembrou que o trabalho escravo é o terceiro crime mais rentável, gerando um lucro de 150 bilhões de dólares por ano, ficando apenas atrás de tráfico de drogas e tráfico de armas. Ele reconheceu os avanços do Brasil nas últimas duas décadas, mas destacou que algumas questões muito delicadas ainda precisam ser discutidas. É o caso da exploração sexual forçada onde cada vítima geral um lucro de 21 mil dólares por ano, mais de dez vezes mais do que o lucro de 2 mil dólares obtido com a exploração de um trabalhador no campo. O agravante, segundo ele, é que essa vítima de exploração sexual forçada não tem acesso aos mesmos direitos que os trabalhadores resgatados. Elas estão ainda mais desprotegidas porque não há uma legislação que as ampare. “Nós também não reconhecemos que a vítima de trabalho escravo como vítima de tráfico de pessoas, e muitos casos têm todos os elementos que caracterizam isso”, completou.
InPACTO
O presidente do InPACTO, Caio Magri, aproveitou a oportunidade para fazer um apelo público ao juiz Lelio Bentes, que faz parte do Fórum Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, para que possa discutir neste espaço a suspensão da Lista Suja. “É necessário melhorar os processos, mas não podemos privar as empresas e a sociedade das informações sobre aqueles que foram autuados e administrativamente julgados.
Sobre Kailash Satyarthi
Kailash Satyarthi tem se empenhado, desde os 25 anos de idade, para combater o trabalho infantil, especialmente o que envolve crianças em situação de servidão. Fundou, em 1980, a organização Bachpan Bachao Andolan, que já libertou mais de 83,5 mil crianças de várias formas de trabalho e do tráfico de pessoas.
Em 1997, organizou a Marcha Global contra o Trabalho Infantil, uma coalizão mundial de ONGs, associações de professores e sindicatos trabalhistas e de empregadores, voltada para a causa da infância digna e protegida. Esse movimento levou 500 crianças de todo o mundo para acompanhar a votação da Convenção nº 182 da Organização Internacional do Trabalho, que, aprovada de forma unânime, determinou as piores formas de trabalho infantil. Seu ativismo foi fundamental para a adoção dessa convenção, que se tornou uma diretriz sobre o tema para muitos governos.
Atualmente, Satyarthi dedica-se à campanha 50 for Freedom da OIT, que busca promover a ratificação do Protocolo Adicional à Convenção 29.
Durante a sua trajetória, além de liderar o resgate de milhares de crianças, o indiano desenvolveu um modelo eficiente para educação e reabilitação das vítimas. Por sua história de dedicação à causa, em 2014 recebeu o Prêmio Nobel da Paz, juntamente com a ativista de direitos humanos paquistanesa, Malala Yousafzai.
Imagens: Clovis Fabiano